capítulo 9



. Minha irmã limpava a poeira da casa, sua mais predileta atividade doméstica. Limpava e limpava, ao som melancólico de Bartô Galeno, e uma musiquinha monocórdica e desafinada, e esticava a canela, uma atrás da outra, conforme o tempo da música. Se a canção é lenta, mais lenta a arrumação da casa, se a melodia, no entanto, é um pouco mais acelerada, acelera-se, também, o passo e a limpeza. Além dos seus livretos de “Júlia” ou “Sabrina”, nada há de mais gratificante na vida de Minéia que aquela poerinha marrom assentada sobre os móveis brilhantes da sala. Consubstancia-se ali, naquele móvel de madeira, a felicidade em outras palavras ou a personificação da mesma. Eis, naquele pretexto, “a sua mais completa tradução”. Ah, ela tá maluca. Se achega docilmente à flanela, sacode-a, tirando os resquícios poeirais da regozijada limpada anterior e dirige-se, solenemente feliz, digna de uma filmagem prum longa metragem, ao móvel afetado; ali, ela deposita, caudalosa, “amante e otimista”, o pano ligeiramente úmido e, de um lado a outro, leva-o; e vai e volta, numa frenética rotatividade de amor e repulsa; seus olhos brilham ante a fantástica ecoação do bater do pano na madeira novamente limpa, diáfana e volta vitoriosa ao seu habitat natural: a cozinha (digo isto sem o menor machismo. Sou completamente a favor das mulheres na luta contra este monstro dilacerado que assola esta terra. Eu também acho que assim como os homens têm direito ao seu carro zero, pra rodar soberano, as mulheres também têm o direito ao seu fogãozinho “seis bocas”, elétrico, novinho. Da mesma forma que eles querem seu celular, pra maior comodidade nas vagabundagens, elas têm o direito ao seu interfone novinho, lá dentro da cozinha, sobre o fogão. Assim como eles querem seu terno novinho, alinhado, elas merecem seu aventalzinho branquinho, diáfano, imaculado, pra usar na sua cozinhazinha linda. Sou contra este machismo. Tem que haver uma revisão, uma reconsideração!) Mas, mais que a simples limpeza de meras poeiras, boa mesmo é a faxina completa que ela faz em dias alternados, quando muda, invariavelmente, o lugar dos móveis, deixando meu pai com uma angústia sem nome no olhar. Ah! Minéia tá maluca! Meu pai tava lá embaixo do pé de amêndoa, com os olhos no tempo, mirando o infinito do azul longínquo que se estendia cinza-verde-claros pros lados da Capital da Bahia, a cidade de São Salvador, talvez lembrando-se do seu tempo de moleque, no sul do estado, em Ibicuí, Macarani, Itarantin...rememorando as vagabundagens da Rua da Moranga, em nossa Conquista, revendo, em mente, os padeiros que iam nas casas de prostituição daquelas bandas, naquela cidade em formação, onde o que hoje é centro, naquela época não passava de mangueiras, baixas de éguas, capineiro pra dar de comer a gado, observando do alto do Ipanema a cidade que, como diria um dos maiores poetas de lá: “fora desenhada por um esteta louco”, onde as mortes a facadas eram tão comuns quanto acordar, andar, falar, xingar ou qualquer outra atitude usual, convencional... estava a pensar o meu pai. Minha mãe, lá no fundo do quintal, labutando com as plantas e mexendo com terra e esterco, fazendo leiras e molhando as plantas ao inominável sol que lhe invadia a alva alma e o límpido olhar brejeiro de catingueiro falador. Pedi-lhe a benção (bença, mainha! - Deus te abençoe) e principiei a minha tarefa do dia: a limpeza do galpão da padaria. Juntei os troços num canto: rodo, vassoura, água, sabão em pó, rádio, pano de chão, fita do Skank, balde, chicletes e fui lá, lavando, lavando, cantando ao deleitoso som do reggae. Acontece que lá em casa existe um corporativismo safado entre Maurício e Minéia, que me acaba. Nem um deles, mesmo com toda a dedicação de minha irmã às tarefas domiciliares, se digna a lavar, um dia sequer, a padaria, o local da fabricação do pão. Ela limpa a casa inteira, passa cera no chão de cabo a rabo, lava as janelas até brilharem, aria as louças todas da casa, ainda que desnecessariamente, limpa a área, lava o carro e tudo o mais, mas quando chega na porta da padaria, ela estanca o passo e deixa a imundície tomar de conta. É impressionante o poder que eles têm de manter suja a padaria. Desta forma, eu me obrigo a limpá-la todos os santos e endiabrados dias. Chova ou faça sol no mundo.

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